Controvérsias e equivocos

Yoga: controvérsias e equívocos

Em seu recente artigo “The lost Teachings” (Yoga International, novembro 2002, pp.60-69) o Yogacharia americano Georg Feuerstein se debruça inquieto sobre os efeitos nocivos do enquadramento de uma sociedade ocidental sobre o Yoga, enfatizando a pratica física e despojando-a completamente do seu caráter filosófico, confessional e de conduta, erodindo os ensinamentos que mantiveram seu conjunto coeso através de milênios. Os recentes eventos cercando a “regularização” do Yoga no Brasil, não são apenas um exemplo mas uma distorção ainda mais aguda deste processo de ocidentalização.

Alavancado pelo sucesso das escolas de Iyengar e Pathabi Joyce na Europa e Estados Unidos, o Yoga experimentou um grande avanço em nosso país na última década, sendo adotado até em academias de ginástica. Esta difusão se por um lado foi gratificante para todos os que ensinavam este aspecto do Hinduísmo no Brasil, de outro suscitou um problema inesperado. Com o crescimento de público foi despertado o interesse de grupos de profissionais (professores de educação física) que até então viam esta disciplina milenar como uma curiosidade exótica com poucas perspectivas comerciais, e de pequeno impacto econômico.

Com o aparecimento de um “mercado” estes grupos tentaram enquadrar o Yoga em um modelo de exploração econômica que reflete mais anacrônicos vícios cartoriais de nossa sociedade do que aos fundamentos básicos que codificaram esta disciplina filosófica-espiritual há milênios na Índia. Felizmente seguiu-se uma reação positiva de praticamente todas as associações e entidades de ensino de Yoga no Brasil contra um projeto de lei que ainda tramita no Congresso. Mas se por um lado um antagonista comum uniu os dispersos professores de Yoga em nosso país, novamente surgiu uma proposta equivocada no seio daqueles que difundem esta prática: a da formação de Conselhos de Yoga. Esta Associação, bem como outras entidades que congregam professores de Yoga no Brasil, é contrária a este conceito por inúmeras razões.

Primeiramente porque como previsto na lei, a função de um conselho é proteger a sociedade contra eventuais danos promovidos por uma atividade. É inaceitável colocar o Yoga, com mais de cinqüenta anos no Brasil, nesta categoria de atividade regulável, como se esta prática que até agora não registrou sequer um incidente envolvendo danos a saúde ou ao patrimônio de alguém justificasse esse enquadramento. Afora isto é questionar milênios desta prática na Índia, onde sequer passa pela cabeça de um legislador, e muito menos de um professor de Yoga, regulamentar uma prática de auto-disciplina que aponta para a liberação do indivíduo e não pelo seu engessamento dentro de concepções de uma sociedade. Foi um equívoco esdrúxulo abrindo um sério precedente atacando o cerne do conceito do Yoga e de suas aplicações na vida de um indivíduo e mesmo de uma sociedade.

Em segundo lugar seguem as limitações impostas pelas regras de um conselho. Na sua pretensão de proteger a sociedade, as práticas e ensinamentos têm que passar por uma prévia avaliação de cunho “científico” antes de serem transmitidas e aplicadas aos alunos. É conhecida de todos as divergências entre as diversas escolas de Yoga sobre o uso de determinados Prãnãyãmas ou Ãsanas, desde sua maneira de fazer, até o momento em que devem ser feitos. Esta falta de consenso e estas disputas, contrariamente do que ocorre no âmbito de uma atividade profissional convencional, fortalecem o Yoga dando-lhe um influxo positivo e dinâmico de novos caminhos que se ajustam as múltiplas naturezas de seus inúmeros discípulos. O sucesso do Yoga é fundamentalmente sua pluralidade, sua capacidade de se adequar as particularidades de cada indivíduo. Em suma, contrariamente dos receituários que são promulgados por conselhos profissionais, e impostos como modelo, o Yoga propõe enfoques distintos, que são escolhidos pelos seus seguidores de forma independente. A busca de uma prática consensual poderia prejudicar, dentro de um enfoque de conselho, grupos minoritários, não proselitistas e consequentemente de menor força econômica, que seriam eliminados por escolas mais organizadas comercialmente, com maior inserção na sociedade. E infelizmente estas escolas hegemônicas são as que menos podem contribuir para a sociedade brasileira.

Nem sequer a ciência pode e deve ser chamada na formulação de procedimentos padrões para o Yoga. Além de não existir no mundo nenhuma instituição científica capaz de “passar a receita” da aula ideal de Yoga, mesmo que houvesse, abriríamos um conflito entre o caráter atemporal dos ensinamentos do Yoga com a transitoriedade das convicções científicas, que mudam constantemente com o aprimoramento das metodologias e das técnicas. Em outras palavras, uma prática rejeitada pela ciência como inócua ou deletéria em um determinado momento, pode muito bem ser considerada benéfica pela mesma ciência, alguns anos após. Afora isto, e principalmente, as práticas de Yoga devem ser julgadas e avaliadas pelos seus praticantes individualmente, a única instância plenamente qualificada para tal.

Em terceiro lugar os conselhos regem sobre aqueles que vão difundir o yoga, o que devem saber, sobre quantas horas podem e devem trabalhar, quanto vão ganhar, o mínimo que devem cobrar de seus alunos, etc. Novamente nos confrontamos com uma questão totalmente alheia aos objetivos do Yoga. No seu país de origem, a Índia, o Yoga é ministrado por um mestre a seus discípulos, e só a ele cabe decidir o que ensinar, quanto tempo ele ou seus discípulos mais próximos ensinarão, se seus discípulos pagam ou não, da forma de pagamento, de suas necessidades de remuneração. Embora vivamos em uma sociedade ocidental com necessidades distintas, onde fica quase impossível manter este tipo de relação mestre-discípulos, o engessamento do ensino do Yoga dentro de enfoques corporativos é uma aberração dos seus fundamentos que visam fugir exatamente das limitações impostas por qualquer sociedade. É tirar do Yoga sua mais importante proposta e enterrá-lo na vala comum das relações capital-trabalho da sociedade industrial. Como enquadrar o trabalho karma yogue? como enquadrar a remuneração de discípulos através de seva e dakshina?

Se equivocam aqueles que acusam a posição da Associação de insensível à aqueles que “dependem” do Yoga. Primeiramente, porque existem inúmeros mecanismos legais que protegem qualquer atividade de ensino no Brasil, com ou sem vínculo empregatício. Em segundo lugar porque nosso código penal e civil tem ferramental suficiente para coibir abusos em nome de qualquer filosofia ou crença. E em terceiro lugar, e sobretudo, o ideal é de que não se dependa do Yoga. Mesmo que muitos vivam exclusivamente do ensino do Yoga, tirando seu sustento desta atividade, não podemos transformar a exceção em regra.

O Yoga não é uma carreira para ser oferecida como são oferecidas inúmeras outras, criando opções de emprego em nossa sociedade. Não é para oferecer uma salvaguarda corporativa, onde só aquele que for aprovado por este ou aquele critério tem o direito de exercer o ensino do Yoga. Esta é uma atividade para ser conduzida por pessoas que acima de tudo, como que por vocação, queiram difundir a mensagem desta filosofia de vida, se possível sem nenhuma dependência, com a maior isenção, para não orientar seus ensinamentos ao sabor do que solicita a volatilidade do mercado. Yoga é libertação, não regulamentação. Os que entendem o contrário deveriam buscar abrigo nas atividades que já proporcionam estas regalias.

O Yoga não é uma oportunidade e sim uma opção. Dentro da concepção hindu dos quatro objetivos da vida humana, Yoga está fragilmente associado a artha e kama (sucesso material e paixão) e fortemente ligado à dharma (ética) e moksha (libertação). Artha e kama estão ligados às oportunidades (e a oportunistas), enquanto dharma e moksha se associam à disciplina interior e opção. Selecionar professores que buscam encontrar no Yoga um caminho para artha e kama, é comprometer a magnitude da proposta milenar codificada por Patanjali, e transformá-la num treinamento de acrobatas e ginastas; e aí, se este for o conceito, não teremos como contestar as pretensões dos professores de educação física.

É dentro do dharma que a Associação se orienta, é por isso que desde o início de suas atividades ela congrega professores de Yoga fundamentada no seu código de ética, e embora forme e treine professores de Yoga através de cursos, fica claro que não busca garantir direitos corporativos para seus associados. Uma rápida leitura de Patanjali já é suficiente para demonstrar que o único julgamento cabível dentro do Yoga é a reflexão do próprio praticante, sobre ele mesmo. Que aqueles profissionais inescrupulosos sejam julgados pelo amplo ferramental que o código civil e penal oferece.

Por : Rui Alfredo de Bastos Freire Filho.

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