A chegada do outono a Calcutá (primavera no nosso hemisfério) traz para essa cidade da Índia uma incalculável multidão de peregrinos que vem participar das festividades de Durga Puja festa em honra, esposa de Siva e mãe extremosa de Ganesha, o deus-elefante, grande responsável pela popularidade da deusa entre os seguidores do hinduísmo. Durante vários dias a grande metrópole esquece suas atividades e se agita ao som de címbalos, cânticos e pés em procissão. Encenam-se peças teatrais e bailados em que a figura simbólica da deusa participa com maior destaque. E ela surge em seus vários aspectos, tríade que é de amante, mãe e guerreira. E, ao despertar do quarto dia – o dia da vitória-, a parte ritualística do festival encerra-se com o sacrifício de um animal e o lançamento de todas as imagens da deusa às águas do Ganges. É o término do Durga Puja (a adoração de Durga) e o início de uma feira, que pode durar até um mês.
É muito difícil para o ocidental compreender o pensamento e a cultura hindus, que só podem ser entendidos depois de abandonados nossos hábitos tradicionais de pensar dentro da lógica formal cartesiana. O hindu não tenta definir a natureza das coisas por meio de um racionalismo experimental, pois para ele não existem os laços que unem o espírito à realidade do mundo. Só é considerada como realidade digna de interesse a especulação sobre o absoluto onde a alma venha a se inserir. Talvez por isso ele se tenha tornado o povo que mais esforços despendeu na busca da solução do destino humano e na procura da verdadeira e última razão da alma.
Essa busca resultou no hinduísmo, a religião predominante da Índia, que, para ser perfeitamente compreendida, faz-se necessário recuar aos primórdios da formação do país, quando, por volta do ano 1500 a.C., começou a chegar ao vale do Indo, um povo, os arianos, trazendo consigo língua, religião e culturas novas. A fonte histórica existente para o estudo desse período e desse povo são os Vedas ( O Conhecimento), um conjunto de textos sagrados que a tradição hindu considera como divinamente revelados.
Os Vedas compreendem quatro coleções de hinos : o Rig-Veda, o Yajur-Veda, o Sama-Veda e o Atarva-Veda. Deles, o Rig-Veda constitui, sem dúvida, a mais antiga fonte de informações sobre as invasões arianas, tendo sido composto, provavelmente, entre os anos 1500 e 1000 a.C. Embora o Rig-Veda não mencione nenhum acontecimento anterior à chegada dos arianos aos vales do Indo e do Ganges, ele narra a resistência encontrada pelos invasores, o que obrigou a se organizarem em pequenos reinos e tornarem-se sedentários e agrícolas. Ao avançarem cada vez mais para o sul, começaram a se misturar e absorver a população nativa – os drávidas, de pele escura e que praticavam o fetichismo.
Os drávidas possuíam diversas divindades, como os yakshas, que eram gênios, espíritos das árvores, fontes da vida e da abundância : os nagas, que eram dragões, espíritos das fontes e dos lagos : e inúmeras deusas da fecundidade, da doença e da saúde, que mais tarde, na osmose surgida entre sua religião e a ariana ou védica , iriam resultar nas shaktis.
A deusa na sua manifestação como Durga, é guerreira. Ela possui dez braços, que se encontram manchados com o sangue dos inimigos derrotados. Nas mãos, também sujas de sangue, carrega suas armas de batalha. O olho na testa é capaz de lançar raios mortais.
Ao lado do aspecto teórico que tomou a crença religiosa, apresenta-se a parte popular do bramanismo. E ela é representada por dois deuses – Visnu e Siva – que formam ao lado de Brahma, uma composição divina que é a base de todo o hinduísmo. É a conhecida tríade (trimúrti) bramânica. Visnu é a força que sustenta o universo e que por ele caminha emanando energia benéfica. Quanto a Siva, é a um tempo o destruidor e o restaurador, e, talvez, por ser tão semelhante ao homem, teve o seu prestígio levado a tal alto grau pela massa religiosa hindu, que por volta do século V começou a surgir uma seita, hoje de imensas proporções dentro do hinduísmo, que lhe dá o principal papel na história do mundo e dos homens, e que a fim de adorá-lo ergueu inúmeros templos, principalmente nas regiões de Caxemira e Bengala.
Foi por essa época que também teve inicio o culto a Shakti, apresentada, geralmente, como esposa de Siva e que representa toda a potencialidade da mulher em seus múltiplos sentidos. Ela é adorada como a Vontade Divina ou a Mãe Divina, a qual exige dos seus súditos ou filhos o total abandono. Na adoração popular possui vários nomes, que lhe são dados de acordo com as formas em que apareceu no mundo. Dessas formas, a mais celebrada é aquela em que ela aparece como Durga, a Inacessível, que simboliza a sagacidade armada ou invencível. Tendo encarnado duas vezes, em ambas foi esposa de SIva. Na primeira encarnação chamou-se Sati e foi filha de Daksha (o princípio masculino ou a força criativa na primitiva religião dos Vedas), o qual deixou de convidar seu genro Siva para uma reunião de deuses, o que levou Durga, despeitada, a matar-se. Na segunda encarnação ela foi filha de Himalaia e Menaca, chamando-se Parvati, ou filha da montanha, e constituindo-se em esposa atenciosa e amante. Segundo os livros sagrados, ela lutou contra o gigante Durga, a quem derrotou. Sua alegria pela vitória foi tão grande que se pôs a dançar com tamanha impetuosidade que os mundos começaram a sacudir. Ao ver perigar a estabilidade da Terra, Siva arrojou-se suplicante a seus pés pedindo que parasse sua dança. Imediatamente Parvati ficou imóvel, a fim de não pisar seu esposo adorado. Em muitas de suas figurações, ela aparece com um pé sobre o peito e outro sobre uma perna de Siva, como a representar esse momento.
Daí em diante ela se apossou do nome de Durga e se apresenta como guerreira, muito embora mantenha no rosto o aspecto gentil de Parvati. Como Durga, ela lutou contra Mahisha, sendo que em muitas de suas imagens ela surge com dez braços, tendo em uma das mãos direitas a lança com que atravessou o seu inimigo, enquanto que na correspondente do lado esquerdo tem uma serpente e um gigante, que sustenta pelos cabelos, e cujo peito é mordido pela serpente. Nos outros braços carrega diferentes armas de guerra, tendo ao seu lado um leão, no qual, geralmente, andava montada. Apesar de toda essa conotação bélica, Durga é adorada como mãe que triunfa sobre o mal. Como Kali, ela se confunde em parte com Durga, embora ordinariamente se apresente com quatro braços e de cor negra. Duas de suas mãos sustentam uma cabeça de gigante e uma cimitarra; a terceira encontra-se em atitude de bênção, enquanto a quarta, na de proteger. Em seu caráter de Kali é às vezes sanguinária e violenta, e traz os olhos, as mãos, os dentes e a língua manchados de sangue. Em seus aspectos mais benéficos, como por exemplo o de controladora das doenças, é muito cultuada, recebendo de seus adoradores o nome de negra abençoada.
O culto a Shakti, nessas suas várias formas, atinge incríveis proporções. Seu festival em Bengala, realizado durante setembro e outubro, é o maior acontecimento no gênero em toda a Índia. Vestindo suas roupagens mais coloridas, chegam à Calcutá peregrinos de todas as partes. Querem ver as mãos da deusa cobertas de sangue após o triunfo sobre o seu principal inimigo, o demônio Azurra.
Durante o festival todos esquecem seus problemas. Amigos e parentes distantes encontram-se nas centenas de templos improvisados que se erguem por toda a cidade. Todos os dias imensas procissões acompanham os sacerdotes que com címbalos e incensórios vão a esses templos acordar a imagem, que na noite anterior fora adormecida ao som de cânticos acompanhados por instrumentos típicos. Durante o dia inteiro há a purificação pelo banho no rio sagrado, que é uma das constantes em todos os festivais hindus. Várias peças místicas são apresentadas, onde a deusa sempre triunfa sobre seus inimigos. Ora ela surge montada em seu leão, avançando velozmente sobre Mahisha ou Azurra; ora ela aparece com o olho de sua testa lançando raios que ferem mortalmente os demônios. Essas histórias são encenadas em palcos armados nas praças ou apresentadas em filmes repetidos várias vezes durante o festival, o que não impede que as pessoas não arredem pé do local, presenciando-os tantas vezes, quantas forem exibidas.
O ponto alto do festival de Durga Puja se dá no início do quarto dia. As centenas de imagens de Durga em suas diversas formas são retiradas dos seus santuários pelo Sangha, que é o responsável pelas cerimônias dentro desses santuários, e levadas para a margem do rio. É a hora do sacrifício da cabra sagrada. Uma grande adaga é erguida e logo depois cai sobre o pescoço do animal; a cabeça rola e ouvem-se gritos. Todas as imagens de Durga, Parvati e Kali são, então, atiradas ao rio. Os amigos cumprimentam-se e desejam mutuamente boa sorte. A música, a dança e as representações assumem um caráter alegre e festivo. É a hora de ir para a feira, onde tudo se compra e tudo se vende. Onde todos se encontram e confraternizam, num contato humano e aberto que parece ser a principal tônica de todo o povo hindu.